O célebre enólogo português, durante anos foi o grande homem por trás do vinho mais famoso e lendário de Portugal – o Barca Velha. Em rápida passagem pelo Brasil, concedeu uma entrevista exclusiva para a Revista Vinicola falando sobre seu projeto Duorum que marca sua carreira em parceria com o também enólogo João Portugal Ramos.

Natural de Lisboa, formou-se em Agronomia numa época em que não existiam enólogos, mas provadores. Era o caso de Fernando Nicolau de Almeida, o célebre criador do primeiro Barca Velha, em 1952, e figura emblemática de A.A Ferreira (a Casa Ferreirinha, posteriormente adquirida pelo Sogrape), onde Soares Franco ingressou em 1979. O “herdeiro” de Fernando Nicolau de Almeida na elaboração do vinho mítico português colaborou ainda intensamente na reestruturação vitícola e enológica da região iniciada nos primórdios dos anos 1980. Quando desafiado a fazer um vinho próprio, se uniu ao seu amigo de longa data João Portugal Ramos e os dois abraçaram este projeto pensado especialmente para a região do Douro.

Os vinhos DUORUM são importados pela Porto a Porto e pela Casa Flora.

VINICOLA – Durante anos o Sr foi o grande homem por trás do vinho mais famoso e lendário de Portugal – o Barca Velha. Em que momento percebeu que era hora de deixar a certeza de lado e começar um novo projeto com um velho amigo?

JOSÉ MARIA – [risos] Eu não pensei nisso, fui desviado do caminho por um amigo, João Portugal Ramos (renomado enólogo do Alentejo). Uma vez nos encontramos, nessa época já estava há bastante tempo na Casa Ferreirinha, e ele me convidou a fazer um projeto com ele no Douro, afinal já fazia tempo que ele queria desenvolver um projeto na região. Pensei: aos 54 anos, produzir no que o Douro tem de melhor, com recursos e sem interferências, é interessante. Após um tempo de reflexão, conclui que deveria fazer algo que fizesse sentido nesta etapa da minha vida profissional, após 30 anos na Casa Ferreirinha, era a oportunidade para eu fazer o meu vinho, do jeito que achasse melhor, de me reinventar. Foi um desafio pessoal, feito pelo João inicialmente, mas que depois tomei para mim também.

Após três meses, nos encontramos novamente e sentamos para montar o novo projeto. Não tínhamos nada, somente nossas experiências de enólogos ao longo de 30 anos, ele no Sul e eu no Norte, e um sonho de deixar nossa marca no Douro.

“Imagina que seu grande amigo te faz um desafio: vamos montar um projeto juntos para você fazer um vinho que tu acreditas, do seu jeito, sem obstáculos. Você não vai ter limites. Vai fazer o vinho como queres, como gosta, como acha que é melhor. Eu não vou colocar qualquer obstáculo!

Um sonho, não é! Para isso, eu só precisava abrir mão do Barca Velha”, José Maria Soares Franco.

VINICOLA – É verdade que vocês são amigos de uma vida? Se conheceram ainda garotos? Como foi essa história?

JOSÉ MARIA – Somos amigos há muitos anos, desde crianças, nossos avós eram amigos, chegaram a ter negócios juntos, depois nossos pais se tornaram amigos. Eu conheço o João desde que nasci. Meu avô tinha uma Quinta em Cintra, onde a família Ramos costumava passar os domingos. Na verdade não me lembro de existir sem ter contato com a família Ramos. Depois ao longo dos anos, sempre continuamos a nos encontrar no litoral, na época do verão. Em seguida, por coincidência, estudamos os dois Agronomia e chegamos até a estagiar no mesmo local. Depois de formados ele foi trabalhar com vinhos no Alentejo e eu fui para o Douro, quando fui desafiado pela Casa Ferreirinha a fazer os vinhos do Porto e do Douro, que na época era apenas o Barca Velha. Todos os outros que vieram depois o Quinta da Leda, Callabriga, Vinha Grande, dentre outros, foram criados por mim.

VINICOLA – Você, um homem do Norte, João, do Sul. Em que momento decidiram que o grande projeto de vocês juntos seria no Douro? E por que a escolha do terroir de Cima Corgo e Douro Superior?

JOSÉ MARIA – Em 2007 nós começamos a desenhar nosso projeto juntos. No início não tínhamos nada, apenas a vontade. De início concordamos que deveríamos começar com nossas uvas, fazer o vinho do nosso jeito desde o começo. Então, a principio, começamos arrendando vinhas e comprando uvas, nossos vinhos de 2007 até 2010 foram feitos assim. Mas com o passar do tempo percebemos que precisaríamos criar a nossa base, a nossa estrutura, e sugeri ao João o Douro Superior que era onde eu conhecia bem por conta do Barca Velha, e que tinha as características que eu julgava necessária para produzir o nosso vinho. Próximo ao rio, perto das encostas para que tivéssemos uvas bem concentradas e uvas frescas em encostas altas, inclinadas, com 500, 600 metros de altitude e perto de estrada para termos fácil acesso. Andamos bastante e encontramos um espaço, por sorte, pois nessa região já não há mais propriedades disponíveis. Eram 86 parcelas pequeninas, num total de 160 hectares, que juntamos para formar a Quinta de Castelo Melhor. Não foi fácil, pois eram vários donos e alguns não queriam vender, tivemos que convencer alguns proprietários, foi trabalhoso, mas deu certo e em 2009 começamos a plantar nossas vinhas lá.

VINICOLA – Quando de fato vocês começaram a produzir em terras próprias?

JOSÉ MARIA – Em 2013 produzimos nosso primeiro vinho na Quinta de Castelo Melhor. Apesar de termos nossa quinta, ainda compramos uvas e utilizamos vinhas arrendadas, pois nossa produção cresceu bastante.

VINICOLA – Como que a sua passagem pela Casa Ferreirinha, pela Sogrape, contribuiu para o seu projeto pessoal?

JOSÉ MARIA – Influenciou muito. Eu aprendi muito lá. Foram 30 anos trabalhando com eles, adquiri muita experiência. Fiz muitos vinhos do Porto e na época fazia o único vinho do Douro que era o Barca Velha. Barca Velha foi para mim a grande inspiração para os vinhos do Douro. Foi ali que eu adquiri minha noção de qualidade, de cultura. Acho que um enólogo tem que saber de tecnologia, de questões técnicas da vinha e do vinho, mas também ter um componente de criatividade, ser um artista. E isso vem do conhecimento. Por conta do Barca Velha eu viajei muito, visitei muitos produtores, visitei muitas empresas parceiras que comercializavam nossos vinhos mundo afora. E é assim que aprendemos muito: com as pessoas, com a vida e com nossos produtos. É claro que não faria sentido sair da Casa Ferreirinha, criar uma empresa e fazer vinhos parecidos com os deles. Se fosse assim não sairia de lá. Eu quis fazer um vinho diferente, talvez um pouco mais moderno, por assim dizer, com um conceito de frescor e acidez, que é o mais marcante nos nossos vinhos, a coluna vertebral que os mantém vivos, e outra coisa que acho muito importante é produzir um vinho que possa envelhecer, que sejam de guarda – nossos vinhos Colheita duram 10 anos, os Reserva até 20 – ao mesmo tempo que podem ser bebidos jovens, para quem aprecia vinhos novos.

VINICOLA – Então seria uma nova maneira de produzir vinhos no Douro?  O Sr acredita que a região está passando por um momento de renovação quanto a sua produção? Buscando, talvez, um novo estilo de vinho?

JOSÉ MARIA – Sim, já existe um novo Douro e não somos só nós que procuramos fazer vinhos diferentes. Credito a isso o sucesso que os vinhos do Douro vem fazendo em novos mercados como Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos, que possui as mais prestigiadas revistas especializadas de vinho do mundo. Cada vez mais os vinhos do Douro conquistam pontuações altas nessas publicações. E nós ficamos muito satisfeitos e agradecidos que os vinhos do Douro estão cada vez mais reconhecidos.

VINICOLA – O que significa Duorum? Por que escolheram esse nome para o projeto de vocês?

JOSÉ MARIA – Duorum é uma expressão latina que significa “de dois”: projeto de dois enólogos, de duas regiões de Portugal e uvas de duas altitudes, vem de duo. E fez todo o sentido para nós. Além do mais se pronuncia da mesma forma em vários idiomas, facilitando a nossa comunicação.

VINICOLA – Seu vinho O. Leucura seria a sua redenção do Barca Velha? As cegas já bateu Vega Sicilia e já teve mesma quantidade de pontos quando comparado ao Barca Velha 2004.

JOSÉ MARIA – Nesse momento eu digo que é. Embora eu diga que ele é totalmente diferente do Barca Velha, pois nunca me passou pela cabeça copiar esse vinho, mas o O. Leucura representa pra mim hoje a mesma coisa que o Barca Velha representava quando eu estava na Casa Ferreirinha. Mas não quer dizer que isso não possa mudar, temos produzido vinhos que podem vir a ser grandes surpresas. A medida que o tempo vai passando, nossa vinha alcançando a maior idade, estamos tendo resultados muito surpreendentes.

VINICOLA – Vocês estão com novidade no portfólio da Duorum, certo?

JOSÉ MARIA – Sim. Ainda não está no mercado. O vinho está praticamente pronto, será lançado ainda este ano, e vamos dar o nome do lugar que ele nasceu: Quinta de Castelo Melhor. É um vinho que eu acredito muito, que eu gosto muito.

VINICOLA – E quando olha para trás, algum arrependimento pelo caminho que escolheu?

JOSÉ MARIA – Nada! Zero. Como eu dizia outro dia, se na época eu soubesse o que sei agora, teria tomado essa decisão 10 anos mais cedo, pois seria mais jovem. Mas é verdade que se atirar num projeto novo te rejuvenesce, te faz encontrar forças que estavam escondidas. Pois, quando você está numa rotina, você amolece um pouco. O desafio de ser criativo novamente, de tentar outra vez, ter que encontrar soluções, novas ideias e colocá-las em prática, te faz mais jovem e mais forte.

Fotos: Carlos Poly e Divulgação

Entrevista concedida com exclusividade para a Revista Vinicola

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