Sempre com ideias vanguardistas e adepta a experimentações, Filipa Pato é também responsável pela evolução primorosa dos vinhos portugueses que aconteceu nas últimas décadas. Considerada uma das enólogas mais renomadas da atualidade, elabora vinhos com refinamento e elegância. Filha de Luís Pato, o vitivinicultor português que mostrou ao mundo o potencial da região da Bairrada e da uva Baga, ela lidera o projeto Vinhos Autênticos, Sem Maquiagem que parte de alguns conceitos como mínima intervenção nos vinhedos e valorização da autenticidade, ou seja, vinhos que revelem a expressão do terroir onde são feitos.

Em fevereiro deste ano o vinho Nossa Calcário tinto safra 2015, elaborado exclusivamente com a uva Baga, recebeu 96 pontos na revista The Wine Advocate, do crítico Robert Parker. Foi a primeira vez que um vinho da região da Bairrada, em Portugal, teve uma pontuação tão alta. O reconhecimento destacou ainda mais o trabalho de Filipa que desde 2014 converteu seus vinhedos à filosofia biodinâmica e não usa herbicida desde 2009. O resultado: uvas saudáveis que eliminaram a necessidade da maquiagem e expressam toda a complexidade do terroir da Bairrada.

Os vinhos são trazidos para o Brasil pelas importadoras Porto a Porto e Casa Flora.

VINICOLA – Você concorda que o vinho português vive o seu melhor momento?

FILIPA – Espero que seja o começo do bom momento! Torço para que seja o início de uma evolução positiva que finalmente o vinho português conquistou. Essa atenção especial em vários mercados, claro que o mercado brasileiro tradicionalmente sempre foi muito aberto e receptivo ao vinho português, mas tem muitos mercados hoje que despertaram para o nosso vinho. Mercados como os Estados Unidos, Canadá, a Europa em geral. É um momento que precisamos aproveitar para manter e até melhorar a qualidade dos nossos vinhos, sem banalizar o produto. Muito importante aproveitar este momento para criar a nossa marca, sem vender gato por lebre.

VINICOLA – Recentemente seu vinho teve a pontuação 96 RP, a primeira vez que um vinho da região da Bairrada, teve uma pontuação tão alta. Como você se sente abrindo essa porta do reconhecimento dos grandes críticos, inserindo a Bairrada na roda dos grandes vinhos do mundo?

FILIPA – A Bairrada não é uma região fácil de vender num primeiro momento.  Os próprios degustadores de Robert Parker também não entenderam o nosso vinho logo de início, é necessário um tempo para entendê-lo. Os consumidores precisam também precisam desse tempo. Mas é fato que o reconhecimento de RP vai facilitar a ponte do conhecimento entre o consumidor e o nosso vinho. Na verdade, aconteceu o mesmo na Borgonha, também foi difícil a compreensão num primeiro momento. Demorou um pouco até ele (Robert Parker)chegar nos bons produtores que lhe conquistaram e, hoje, a Borgonha tem um grande espaço no mercado norte-americano. Suas últimas avaliações até tenderam mais para os vinhos da Borgonha do que Bordeaux, justamente por essa produção artesanal tão difícil de entender e encontrar num primeiro momento. E isso acontece também na Bairrada. Temos que conquistar esse mercado trabalhando com cuidado a vinha, de forma artesanal, mostrando todo o potencial da nossa região através do nosso vinho de pequena produção, que nunca vai e nem pode chegar a uma escala industrial.

VINICOLA – Os vinhos da Bairrada ainda são muito incompreendidos, a culpa é da Baga?

FILIPA – A Baga é o que há de melhor na Bairrada! A Baga é o caráter da região.  É uma casta difícil, sim, assim como a Pinot Noir, principalmente na Borgonha. Por isso que ambas as uvas necessitam de tanto cuidado na vinha. Somente com muito cuidado no vinhedo vamos ter uma uva de qualidade e, consequentemente, apenas dessa forma, teremos um vinho bom. É por isso que passamos um ano inteiro cuidando da vinha. Com uma boa matéria prima não tem como não fazer um vinho bom.

VINICOLA – É verdade que você passa 70% do seu tempo nos vinhedos? Sua maior dedicação está na terra?

FILIPA – Sim. É uma ligação especial. É como ter filhos, a cada ano uma história diferente. As diferenças climáticas sempre nos reservam surpresas e uma nova história. Tivemos três anos relativamente fáceis (2015, 2016 e 2017), mas este ano, 2018, foi um ano que testou bastante nossa ligação com a vinha. Foi um ano de muita chuva, tivemos que trabalhar muito na terra. Foi uma primavera extremamente chuvosa, o que exigiu muito cuidado com o controle de doenças. Mas no final aqueceu um pouco mais e tudo passou, mas foi muito difícil conseguir manter a uva na vinha.  Tivemos problemas com algumas variedades, como a Maria Gomes, e perdemos toda a produção por causa da chuva. Esse excesso de chuva ocorreu na floração e acabou com o desenvolvimento da uva. A Baga resistiu, com uma produção pequena, mas resistiu. A Bical sofreu bastante, alguns bagos não aguentaram, mas teremos alguma coisa.

“Tivemos três anos relativamente fáceis (2015, 2016 e 2017), mas este ano, 2018, foi um ano que testou bastante nossa ligação com a vinha. “

É um trabalho difícil, somos agricultores e essa é a parte que mais gosto, pois para fazer um vinho artesanal, tem que cuidar da planta. Precisamos dar o nosso coração para elas.

VINICOLA – Vocês expandiram a área produtiva não é?

FILIPA – Tivemos a oportunidades de expandir nossa área de produção.  Hoje temos 15 hectares, aumentamos bastante. Nós trabalhamos muito com vinhas bastante velhas, o que no final ainda exige mais do nosso cuidado. Um hectare de vinha velha exige o mesmo trabalho de 4, 5 hectares de vinhas novas, uma vez que o trabalho não pode ser mecanizado, tem que ser feito todo de forma manual. Mas é um trabalho que nos dá muito prazer.

VINICOLA – Seus vinhedos são de cultura biodinâmica, o trabalho também é muito maior.

FILIPA – Sim, o trabalho biodinâmico exige mais cuidado. Não utilizamos herbicidas, não usamos agrotóxicos, portanto acabamos ficando mais expostos. Por isso é tão importante cuidar da vinha, tentar dar o máximo de sanidade a elas para que possam estar mais forte para resistir as pragas.

“Elas comem a erva toda. E também servem para fertilizar naturalmente o solo. “

“Usamos animais nas vinhas, como é o caso das ovelhas, que pomos lá entre novembro e fevereiro, quando ainda não há folhas nas videiras”, disse também na entrevista. “Elas comem a erva toda. E também servem para fertilizar naturalmente o solo. E na primavera, na altura em que temos o ataque dos caracóis, levamos para lá as galinhas. Sou química de formação, mas evito usar os produtos químicos. Nas minhas vinhas e nos meus vinhos não há nenhum produto químico”, completa Filipa.

VINICOLA – Você é engenharia química por formação, mas não utiliza nada de produtos químicos na sua cultura. Como a sua experiência fora de Portugal contribuiu para você seguir uma filosofia de produção tão purista?

FILIPA – Eu sempre tive esta visão de, pelo menos, não usar herbicidas nos vinhedos. E quando estive na Bélgica – meu marido tinha um wine bar maravilhoso lá, e provamos muitos vinhos de todo o mundo –, os que mais me impressionavam eram os biodinâmicos, vinhos com alma e caráter. Depois visitei muitos produtores na França que seguiam essa prática e cheguei a conclusão que isso era muito importante, que demandava muito mais envolvimento com a vinha e era exatamente esse compromisso que eu queria ter, foi o que sempre sonhei em fazer. E conseguimos fazer essa transição em 2014 quando nossa família passou a viver toda junta na Bairrada. Acredito que o envolvimento familiar no cuidado e interação com a planta é importante para uma aplicação bem sucedida da prática biodinâmica.

VINICOLA – Você tem usado ânforas no seu processo de vinificação.

FILIPA – A ânfora é algo que tem muito a ver com a história da Bairrada, desde a época dos romanos. Os romanos usavam ânforas e a nossa região é a terra do barro, aliás, Bairrada é derivada da palavra barro. O fato de usarmos ânforas é interessante porque conseguimos uma micro-oxigenação com a porosidade do barro, que no fundo é a mesma função da madeira, que é a de deixar o vinho respirar.  A porosidade do barro é a mesma da madeira, mas o vinho respira com mais controle.  No caso da Baga, é muito interessante justamente por ser uma casta com muitos taninos e que se adapta muito bem a ânfora, pois com essa micro-oxigenação os taninos se tornam mais macios, mas sem o aporte do carvalho, sem a maquiagem da madeira.  Gosto muito de fazer esse vinho, pois é o passado da Baga. É o olhar para trás para ver o futuro.

VINICOLA – O que você pensa sobre o vinho natural, prática que está crescendo mundo afora, e com bons exemplos produzidos na região de Lisboa.

FILIPA – Acredito que essa vertente tem crescido muito em Portugal por influência de países como França e Itália, que já vem caminhado nesse sentido do vinho natural há algum tempo e fico muito contente com isso. Não tinha pensado por esse lado, mas de fato os vinhos naturais que mais aprecio por aqui são da região de Lisboa. Realmente é uma região que está se destacando nessa área, surgiram há pouco tempo, com uma apresentação diferente e muito bem feitos. Vai criar um alerta para o mercado do vinho em Portugal e o fato de estarem perto da capital vai facilitar a disseminação desse estilo de vinho e espero de verdade que influencie as demais regiões do país a seguirem esta vertente.

VINICOLA – Seus vinhos não deixam de ser natural, não é?

FILIPA – Nós trabalhamos de forma natural também, mas pela biodinâmica. Na verdade esses produtores também trabalham com uma cultura biodinâmica, sendo uma cultura biológica. Até porque, a meu ver, um vinho para ser natural deve ser no mínimo biológico, pois não é apenas o sulfito que faz mal para a saúde, os agrotóxicos, para mim, são muito mais prejudiciais. Nós trabalhamos, no caso da Baga, com quantidades mínimas de anidrido sulfuroso, pois é uma casta com muito tanino e não precisa de quantidade excessiva, já que possui antioxidantes naturais. No branco, também trabalhamos com quantidades baixas, então creio que vai ser uma preocupação maior para os grandes produtores, porque eles vão ter que rever esse uso excessivo, sendo no final a melhor alternativa para todos.

VINICOLA – Como você vê o futuro dos vinhos da Bairrada?

FILIPA – O futuro dos vinhos da Bairrada vai depender muito da comissão vinícola da região, porque a Bairrada é uma mistura de muita coisa. É uma área delimitada e ponto. No fundo, o que de fato determina essa denominação é essa delimitação territorial, já que é possível usar qualquer variedade de uva.  Eu acho que a Bairrada precisa pensar em separar o trigo do joio, ter uma vertente certificada que segue uma linha mais tradicional, com castas tradicionais da região e outra que segue uma linha mais liberal que utiliza as variedades de outras regiões do mundo, pois não se deve confundir a Bairrada com Merlot e Syrah.

VINICOLA – Como está indo o seu projeto de enoturismo em Óis do Bairro?

FILIPA – Está indo muito bem, mas não tão rápido como gostaríamos. Meu marido William, que está diretamente ligado a este projeto está envolvido na organização do Concurso Mundial de Sommelier na Ásia e Oceania e não temos conseguido receber todas as pessoas que nos contatam, infelizmente. É um projeto nosso, onde recebemos juntos na nossa casa as pessoas, assim nossas agendas precisam estar alinhadas, pois William prepara o menu e eu cuido da apresentação dos vinhos.  Com ele passando muito tempo fora de Portugal está mais difícil. Mas temos recebidos pessoas fantásticas do Brasil, Finlândia, Noruega, Bélgica, França e muitos italianos também. É um projeto que vai muito bom, poder juntar várias culturas em torno de uma mesma mesa é fantástico.

** Entrevista concedida com exclusividade para a Revista Vinicola.

Fotos: Carlos Poly e Felipe de Souza

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