Hervé Birnie-Scott, Chef de Cave da Terrazas de los Andes e Cheval des Andes, conta numa envolvente história como foi estar à frente da criação de um dos mais bem sucedidos projetos da renomada Möet Chandon fora da França.

VINICOLA – Podemos dizer que o vinho está no seu DNA, afinal você nasceu no Loire, na icônica região de Sancerre, quando foi que percebeu que o vinho seria a sua profissão?

HERVÉ – O início da minha sensibilização pelo vinho se deu porque vivi, com minha família, em Sancerre, conhecida pelo Sauvignon Blanc. Para mim, o vinho, primeiro, fez parte da minha vida enquanto paisagem, que marcou minha vida com os vinhedos e as colinas. Mais tarde fui influenciado pelo círculo de amigos da minha família. Nós não tínhamos uma adega própria, mas éramos de uma família de médicos e farmacêuticos do povo da região, tínhamos uma tradição ali. Por isso frequentávamos as adegas de amigos – de meu pai, principalmente, a quem eu me juntava para participar dos passeios –. Depois das paisagens, as lembranças dos dessas adegas me influenciaram. A movimentação social desses ambientes me encantava. Depois dos 16 anos, meu pai me ensinou a desenvolver um gosto e a aprender a degustar a bebida. Desde então o vinho me invadiu. Mas a primeira recordação que eu tenho da minha relação com o vinho é da beleza dos vinhedos da minha região.

“Nós não tínhamos uma adega própria, mas éramos de uma família de médicos e farmacêuticos do povo da região, tínhamos uma tradição ali. “

VINICOLA – Sempre pensou em trabalhar com vinho, então?

HERVÉ – Aos 17…18 anos, sim. Trabalhava nos vinhedos, ajudando na produção do vinho. Mais tarde, ingressei no estudo superior de agronomia e enologia. Assim, com os estudos e as viagens, foi possível enxergar a partir de um novo panorama – antes, só imagina meu futuro em Sancerre e descobri que existiam outros grandes terroirs, que havia outras culturas de vinhos, como na Espanha, na Itália, e outras regiões da França por exemplo.

VINICOLA – Mas você iniciou sua história profissional na Califórnia?

HERVÉ – Sim, pelo fato de o último ano da faculdade de engenharia permitir aos estudantes fazer um intercâmbio acadêmico de seis meses. Assim, eu decidi por fazer meu último período de estudos nos Estados Unidos, em São Francisco. Era 1988 ou 1989, e quem me recebeu foi uma família proprietária de vinhedos e adegas. Ao final desse semestre eu estava encantado pelo local, pela região. Eu queria voltar para o meu povo, o meu povoado, mas depois dessa experiência resolvi seguir por algum tempo fora da França, pois há coisas que não nos ensinam, coisas que eu poderia aprender antes de voltar para a minha terra.

Exterior da Bodega

VINICOLA – Você participou da criação da vinícola Terrazas de los Andes, como foi estar a frente deste projeto?

HERVÉ – Eu comecei na Terrazas de los Andes depois de trabalhar para um grupo norte-americano, quando viajava de norte a sul,  dos Estados Unidos à Austrália e Nova Zelândia. Eu estava na França na época, quando um amigo me avisou que a Moët & Chandon procurava alguém para se responsabilizar pela produção de vinhos na Chandon da Argentina. Passado um tempo, fui chamado pelo então presidente da Chandon Argentina. Fui ao seu encontro e foi quando me apaixonei pela terra. Imagine: há 25 anos, quando não havia acesso à internet como existe hoje, era praticamente impossível saber como era a América do Sul, sua cultura e suas paisagens. Lá, Jean, o presidente, me deu carta branca para assumir os vinhedos. Ou seja, cheguei, já em 1991, para fazer os vinhos que eu realmente queria.
Lá, tive a oportunidade de conhecer um tipo de uva que já não existia mais na França e que me impactou: a Malbec.

VINICOLA – Dentre tantas possíveis regiões no Novo Mundo para cultivo do vinho, por que o grupo escolheu Mendoza? Afinal a região ainda não era uma referência como conhecemos hoje.

HERVÉ – Essa é uma história de pioneirismo e empreendedorismo familiar. A companhia francesa Moët & Chandon é fundada em 1743 com Claude Moët. As gerações atravessaram revoluções e guerras, e se firma como empresa com o genro de Claude, o Moët & Chandon, por sempre ser um pioneiro na zona de Champagne. Em 1950, Moët & Chandon percebe que os 30 mil hectares da região de Champagne não eram superfície suficiente para produzir bons espumantes para abastecer todo o mundo. Assim, o presidente da companhia na época e Moët & Chandon se lançaram na empreitada para descobrir novas regiões para a produção do espumante com a mesma excelência que o da região de Champagne. Isso acontece em 1957/1958, quando o mapa da vinicultura se limitava às regiões da França, da Espanha, da Itália e um pouco da Alemanha. Califórnia não existia como produtora nessa época, Austrália e Chile tampouco. Então era um mapa muito concentrado, tanto de produtores, quanto de consumidores.

VINICOLA – O projeto da Terrazas iniciou num momento muito importante da história vitivinícola na Argentina. Qual foi o papel da Terrazas nessa transformação?

HERVÉ – Moët & Chandon é responsável por isso. Em 1960, a Argentina estava em evidência. Há tempos, já tinham sido produzidos os primeiros espumantes dessa região, e se percebia que havia vinhedos de qualidade na região, a altura dos Andes permitia encontrar um clima frio como o francês, uma altitude que também trazia frescura para as frutas que produzem os bons espumantes. Era um país que também já tinha mão-de-obra para trabalhar nas vinícolas e consumidores. Moët & Chandon percebeu isso e entrou na Argentina, em um primeiro momento, para produzir espumantes. Depois, começou a produzir vinhos para um consumo mais local. É nesse momento que eu entro, em 1991, para produção de vinhos para exportação.

VINICOLA – Como vocês chegaram a criação do vinho Terrazas de los Andes?

HERVÉ – Quando me pediram para recriar, em 1991, vinhos de variedades modernas, tinham em mente os vinhos para exportação, como os bem sucedidos exemplares da Califórnia, da Austrália, e até mesmo alguns da Nova Zelândia.
A criação do Terraza de Los Andes envolveu horas e horas caminhando pelas terras de Mendoza, para encontrar uma fruta boa, buscando vinhedos de altitude, atrás de um clima fresco, que no caso de Mendoza se atinge a partir de 900 metros de altura. Portanto, minha busca foi por terroirs frescos, porque isso era novo. Terrazas revolucionou na Argentina e em Mendoza porque nós nos preocupamos em comprar e plantar vinhedos em altitude. Enquanto o limite dos outros era de 800 metros, nossa base era 1000 metros. Isso tudo também se deu porque eu tenho essa obsessão por buscar essa fruta bem fresca: nada queimada, não alcoólica, nem cansada pelo sol e pelo calor. E tudo caminhou com muita precisão, muita tecnologia, depois de quilômetros caminhando pelos vinhedos, noites em cima dos tanques elaborando os vinhos, horas em cima das barricas para elaborar o melhor vinho. Enfim, foram 23 anos com 5% de inspiração e 95% de transpiração.

VINICOLA – E a joint venture com a vinícola francesa Chateau Cheval Blanc, como nasceu essa parceria?

HERVÉ – Essa é uma história muito bonita. Eu já vinha desde 91, e já no final dos anos 90 em Terrazas havia vinhos muito interessantes: Malbec, Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Merlot e Petit Verdot. E um dia recebemos um chamada telefônica de Cheval Blanc interessados em “roubar” um vinho. Pois bem, dentro de um mês Pierre Lurton, presidente da Cheval Blanc, estava na Terrazas provando tudo e conhecendo os vinhedos. E, segundo o próprio Lurton, uma das coisas que o influenciou no firmamento dessa joint venture foi a beleza das paisagens de Mendoza. Depois, como fiquei sabendo mais tarde, a Malbec influenciou em sua decisão. Pois o terroir da Argentina, e mais especificamente de Mendoza, é perfeito para a produção desta variedade. O Malbec produzido nessa região é fruto de milhares mudas importadas da Europa, em 1940/1945, dentre elas, muitas eram podas dos vinhedos de Cheval Blanc, que nessa época já não conseguia produzir o Malbec. Por isso, essa foi uma tentativa de Lurton de recuperar o seu Malbec, o Malbec de Cheval Blanc.

“E um dia recebemos um chamada telefônica de Cheval Blanc interessados em “roubar” um vinho.”

E, por fim, a Cheval Blanc incorpora a ideia do equilíbrio entre a produção do Malbec e do Cabernet Sauvignon, e as vinícolas de altura em Mendoza são as únicas oferecem uma combinação perfeita que favorece o casamento perfeito entre os dois.

VINICOLA – Apesar da Malbec ser um ícone do país, muitos produtores estão apostando no cultivo de outras uvas como  Bonarda, Petit Verdot, Syrah e acreditam que os blends são a evolução do vinho no país, o que você pensa a respeito?

HERVÉ – Eu acredito que não há porque não apostar nos blends. Mas também acredito que o nosso trabalho é conhecer cada vez melhor que magnifique uma determinada variedade. Nossa obsessão é chegar a um terroir que seja mais puro possível. Portanto, há um lugar para cultivar blend, mas cada variedade em seu lugar ideal.

VINICOLA – Podemos esperar alguma novidade nesse sentido da Terrazas?

HERVÉ – O que sei que podem esperar de Terrazas é o que viemos fazendo nesses últimos 23 anos: procurando o melhor terroir, apurando a vinificação, com a preocupação de trazer um vinho cada vez mais excepcional. Nossa meta é a excelência, e essa é uma busca infinita. E o terroir que Mendoza nos oferece é excelente, mas ainda há muito há ser trabalhado nele.

VINICOLA – Atualmente alguns mercados do Novo Mundo estão supervalorizados, como o brasileiro e o chinês, que são considerados por muitos produtores a “bola da vez”. Como está o paladar desse consumidor, foi aprimorado ou os produtores do Velho Mundo se adaptaram para atender este novo perfil consumidor?

HERVÉ – Há regiões como os Grands Crus, na Borgonha e outros lugares eternos que revolucionaram um pouco nos últimos 30 anos, mas não para o paladar brasileiro ou chinês, e sim, mudaram em relação à qualificação de “los gurus”. Isso teve uma incidência na forma de produção do vinho no Novo Mundo. Por exemplo, o Bordeaux de vinte anos hoje não é mesmo e não será o mesmo que o do futuro, em parte porque os grandes formadores de opinião gostavam de vinhos opulentos, com uma sucosidade natural, muita presença da fruta, muita intensidade. Esse estilo influenciou um pouco mais em alguns produtores, um pouco menos em outras. A meu ver, isso aconteceu para o bem. Pois era um estilo muito exigente, a bebida tinha que ter a fruta, volume, dureza com equilíbrio. Com o tempo, deixamos de lado esses excessos e evoluímos a algo um pouco mais elegante e atemporal.
Quanto ao mercado chinês é, hoje em dia, sobretudo, um mercado de caráter ocidental. É um país que consome muito, mas não acredito que influencie na forma de produzir dos grandes produtores. Amanhã, quem sabe? Mas hoje, acredito que não seja o caso.

“E o Malbec, por serem suaves e frutados, também vai bem com esse gosto natural do brasileiro. “

Já o Brasil é um mercado novo, com uma média de consumo relativamente pequena. Mas eu já percebo a busca do paladar brasileiro por um vinho harmonioso, não buscam a superconcentração ou vinhos muito corpulentos, mas uma bebida que se equilibre com a sua comida, dessa forma, deve acompanhar o paladar. O mercado brasileiro atual consome muito tintos, mas que em 50 anos tem chance de ampliar seu consumo de vinhos brancos e espumantes, pois tanto o clima, quanto a gastronomia dão muitas opções para o consumo dessas bebidas. E o Malbec, por serem suaves e frutados, também vai bem com esse gosto natural do brasileiro. 

Colheita em Terrazas

** Entrevista concedida com exclusividade para a Revista Vinicola.

Fotos: Divulgação

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